sábado, 7 de junho de 2008

NÓS, OS HUMANOS

Num sábado de maio, ao tirar o carro do estacionamento da padaria, vi entrar um homem numa cadeira de rodas. Bem vestido, apressado, subiu o degrau de entrada sem dificuldade, parecendo saltar com a cadeira, como fazem os skatistas quando levantam do chão seus brinquedos, num movimento que os não-skatistas nem entendem como pode funcionar.

O homem parecia apressado. Não daquela pressa que deixa as pessoas de cara fechada de tensão, mas o tipo de pressa que gera uma rapidez entusiasmada, como alguém que se está divertindo com a vida e tem muita coisa a fazer –. e por isso tem pressa. Alguém que vai à padaria num sábado de manhã para comprar pães quentinhos, com a perspectiva de muitas outras coisas interessantes estendendo-se diante de si para o resto do dia.

Ele não tinha pernas.

Não me refiro a não ter a parte de baixo das pernas, ou a não ter joelhos. Não tinha pernas, ponto. Existia apenas do tronco para cima. Quando cheguei em casa, até comentei isso com a família, impressionada talvez com a expressão de entusiasmo no rosto desse homem e também com a agilidade na condução do veículo.

Por acaso, no dia seguinte, no shopping center, ele estava bem na minha frente, na escada rolante. Não vi como acessou a escada; quando cheguei já estava ali. Uma das mãos, a esquerda, firmava-se no corrimão de borracha, sustentando e equilibrando a cadeira cujas rodas não cabiam inteiras num degrau. A outra mão segurava a de uma menininha de uns oito ou nove anos, bonitinha, de cabelos escuros, lisos e compridos que subia de mãos dadas com ele, com a mesma naturalidade de qualquer outra menina que segura a mão do pai, num passeio. Conversavam, animados, sobre o presente que iriam comprar para o dia das mães. Ah, sim: era o dia das mães. Segundo domingo de maio.

Ela não parecia encontrar nada de estranho em estar ali com ele. E é claro que não estranhava – ninguém no mundo é menos estranho para a gente do que nossos pais. E ele não estava se apoiando na menina: dava a mão a ela como qualquer pai dá a mão à filha, com carinho e companheirismo. Vi a aliança no dedo anular, na mão que segurava o corrimão. Um homem casado. Um pai de família, com uma esposa e uma filha.

Não pareciam diferentes de nenhum par de pai e filha que, naquele shopping (como dizem os brasileiros), naquele dia, faziam compras juntos. Mas atraíam a atenção de todos, é claro.

Devem estar tão acostumados a atrair olhares que nem registram o espanto dos outros – assim como celebridades acostumadas a ser reconhecidas por onde passam.

Ontem vi esse homem de novo, no caixa eletrônico do supermercado. Havia umas três pessoas na minha frente, na fila. Era ele quem usava a máquina, naquele momento. Erguendo-se na cadeira tanto quanto possível, para ver melhor a tela, parecia estar encontrando algum problema em realizar alguma operação bancária; acho que tentava pagar uma fatura – e vocês sabem: digitar aquelas duas dúzias de números é uma das tarefas mais exasperantes que a civilização exige dos humanos. Os mais acomodados – estou entre esses – nunca fazem isso; encontram alguma outra solução.

Um homem de cabelos brancos ajudava o que estava na cadeira de rodas. Vi quando esse senhor virou as costas para a máquina, para que o outro teclasse a senha com privacidade. Pensei que fosse um desconhecido, alguém que simplesmente estivesse na fila e se tivesse disposto a ajudar. Continuavam, ambos, não conseguindo realizar a operação – qualquer que fosse ela.

Foi aí que aconteceu o que me levou a escrever esta crônica: o homem na cadeira de rodas aproximou os dois braços da cadeira, fechando-a – é uma dessas dobráveis, leves, de lona – e, simultaneamente, não como um acrobata que faz algum movimento impossível, mas num gesto confortável embora rápido (tão rápido que não dava para entender como fez aquilo) subiu neles. Subiu, sim, nos braços da cadeira! Agilmente e com a maior naturalidade encarapitou-se ali para ver de mais perto a tela, aproximar o rosto do monitor.

Por fim conseguiu completar o que quer que estivesse tentando fazer. Com a mesma rapidez de mágico, abriu a cadeira, acomodou-se no assento, perguntou ao outro:

– Vamos?

E saíram conversando, lado a lado, em direção à saída do supermercado. Ah! Então o outro não era apenas alguém que, na fila, se ofereceu para ajudar. Tinham ido juntos ao caixa automático, como quaisquer dois amigos que vão a qualquer lugar fazer qualquer coisa – dessas tarefas corriqueiras na vida dos humanos, mas que surpreendem os outros humanos quando vemos alguém com um aparente impedimento físico realizar sem nenhuma dificuldade – a não ser aquelas pequenas dificuldades que qualquer outra pessoa encontraria.

Saber que existe gente assim é estimulante. Gente capaz de enfrentar, como se nada fossem, contingências que podem parecer desanimadoras. Só o fato de “saber” que essas pessoas existem já provoca entusiamo; mas ver e rever alguém assim deixa um estoque duradouro de admiração pela fibra de que somos feitos, nós, os humanos.

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