quarta-feira, 7 de julho de 2010

Dossiê Pagu - II

Lendas, mitos, curiosidades, declarações e depoimentos sobre Pagu e Patrícia Galvão

Patrícia Rehder Galvão nasceu no interior de São Paulo, em São João da Boa Vista, no dia 9 de junho de 1910 e morreu em Santos, em dezembro de 1962. Pagu teve existência mais breve: viveu apenas de 1929 a 1940. Nasceu já com 18 anos. Patrícia extinguiu o personagem quando ambas tinham 30.

O apelido nacionalmente conhecido foi criado por Raul Bopp, que levou a normalista de 18 anos ao salão da Alameda Barão de Piracicaba, onde Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral recebiam seus amigos. Apresentou-a: “Esta é a Pagu”; todos se encantaram. Foi só no fim da noite que ela mesma lhe perguntou: “Por que Pagu?”. Bopp respondeu que juntara as primeiras sílabas dos seus dois nomes: Patrícia e Gusmão. “Mas sou Galvão, não Gusmão!”. Tarde demais: a essa altura ela já se tornara irrevogavelmente Pagu para os modernistas paulistanos.

Essa foi a história que sempre ouvi. Entretanto, hoje, todas as fontes que contam a origem do apelido informam que a confusão de Bopp se deu, sim, mas com o sobrenome Goulart. Será? Um poeta como Bopp, alguém com o ouvido afinado para o som das palavras, confundiria Galvão e Goulart, que sequer rimam?

Encantado com os olhos verdes da estudante, Raul Bopp compôs para ela o Coco de Pagu, mais tarde publicado em Cobra Norato apenas com o título Coco . O poema foi dedicado “ao Di”, na forma original, como saiu na revista Para Todos , acompanhado por uma ilustração de Di Cavalcanti:

CÔCO DE PAGU

Ao Di

Pagu tem os olhos molles
Olhos de não sei o quê
Si a gente está perto delles
A alma começa a doer
Ai Pagú eh
Dóe porque é bom de fazer doêr

Pagú! Pagú!
Não sei o que você tem.
A gente, queira ou não queira,
Fica lê querendo bem.
Eh Pagú eh
Dóe porque é bom de fazer doêr

Você tem corpo de cobra
Onduladinho e insolente
Dum veneninho gostoso
Que dóe na bocca da gente
Ai Pagú eh
Dóe porque é bom de fazer doêr

Eu quero você pra mim,
Não sei se você me quer,
Se quiser ir pra bem longe
Vou pronde você quiser.
Eh Pagú eh
Dóe porque é bom de fazer doêr

Mas si quiser tá pertinho
Bem pertosinho daqui
Então... você pode vir
Ai... ti ti ti, ri ri-ri... ih...
Eh Pagú eh
Dóe porque é bom de fazer doêr

Apesar da mistura de estrofes pontuadas e não pontuadas, essa versão soa hoje superior à definitiva (publicada em Cobra Norato e facilmente encontrável na internet através de qualquer mecanismo de busca).

Raul Bopp conheceu a estudante através de Olympio Guilherme, antiga paixão de Pagu, que entregara-se a ele antes de completar 12 anos, como conta na carta a Geraldo Ferraz. No entanto, ela diz: “não houve a menor violência de Olympio, nessa posse provocada por mim”. Ao mesmo tempo que conta isso, afirma: “não tive precocidade sexual. [...] Eu era apenas uma criança. E só queria amar. [...] Olympio não me amava. Tinha uma situação complicada, que não queria desmanchar socialmente”. Aos 14 anos, um aborto. Depreende-se do relato que a família ignorava a razão de Patrícia ter ficado de cama por quase um ano. “Mamãe, as noites comigo. Nenhuma solidão. Só a palavra amiga de Guilherme de Almeida, que de tudo sabia”.

Uma das coisas que Pagu não conta, em sua autobiografia, é que participou, em 1927, de um Concurso Fotogênico de Beleza Feminina e Varonil promovido pela Fox Film com a intenção de formar pares de atores. Os vencedores, que viajaram em seguida para Hollywood, foram Olympio Guilherme e Horácia de Moraes – que veio a assumir o nome artístico de Lia Torá. Pagu demonstra despeito ao publicar uma foto de Lia no jornal O Homem do Povo, que editava com Oswald, com a legenda “A Fracassada”, na coluna Palco Tela - E - Picadeiro, em matéria assinada Piolim.

Ela praticamente ignora, também, no seu relato a Geraldo, a relação com o casal Oswald e Tarsila, que parece tão importante para os estudiosos do modernismo. É preciso buscar noutras fontes essa faceta do retrato de Pagu.

Artigo de Camila Ventura Fresca, publicado no site Vidas Lusófonas, cita depoimento de Flávio de Carvalho, de 1964, que fala de Pagu como “uma colegial que Tarsila e Oswald resolveram transformar em boneca. Vestiam-na, calçavam-na, penteavam-na, até que se tornasse uma santa flutuando sobre as nuvens”. O mesmo artigo dá uma descrição de Pagu por “um estudante de Direito da época”: “Uma menina forte e bonita, que andava sempre muito extravagantemente maquiada, com uma maquiagem amarelo-escura, meio cor de queijo Palmyra, e pintava os lábios de quase roxo, tinha um cabelo comprido, assim pelos ombros, e andava com o cabelo sempre desgrenhado e com grandes argolas na orelha. Passava sempre lá pela faculdade, de uniforme de normalista. E os estudantes buliam muito com ela, diziam muita gracinha pra ela [...] faziam muita piada e ela respondia à altura, porque não tinha papas na língua para responder”.

Em março de 1929, Pagu inicia, com desenhos, sua colaboração na chamada ‘segunda dentição’ da Revista de Antropofagia . Em junho, para espanto de sua família, aparece no Teatro Municipal de São Paulo, vestida por Tarsila, declamando poemas numa festa em homenagem a Didi Caillet – Miss Paraná daquele ano, escritora, musa dos futuristas paranaenses, precursora do feminismo, conhecida por hábitos revolucionários como o de dirigir automóveis sozinha.

Sydéria Galvão, irmã de Pagu, assim descreve o evento: “Foi muito engraçado esse dia. Nós fomos a esta festa, eu, mamãe e papai, mas a Pat não estava com a gente, ela tinha ido na casa de Oswald com Tarsila. De repente, a gente viu numa frisa – a gente estava na platéia – a Pat com Tarsila e tudo, completamente irreconhecível. A gente dizia ‘é a Pat, não é a Pat’ (a gente não a chamava de Pat, mas de Zazá, que ela odiava), mas a gente não entendia porque ela estava maquiada, de um jeito diferente. Eu não gostei, achei mais feia do que ela era, muito sofisticada pelo meu gosto, eu era menina naquele tempo, não gostei mesmo. Daí ela declamou aquelas coisas, porque tinha conhecido a Didi Caillet na casa de Tarsila, tinha aquele lero-lero de Didi Caillet ser intelectual...”.

Como se vê, antes de se tornar Pagu, Patrícia era chamada de Zazá pela família. E quando deixou de ser Pagu passou a ser Pat. Ao longo de sua carreira, usou muitos outros nomes, desde os 15 anos, quando começou a assinar artigos para o Brás Jornal como Patsy.

Em agosto de 1929, Clovis de Gusmão publica na revista Para Todos uma matéria sobre a exposição de Tarsila do Amaral no Rio de Janeiro. Nela inclui uma entrevista breve com Pagu, a quem chama de “habitante do mundo Tarsila”, que “encantou a todos pela graça, pela intelligencia e pela ingenuidade”:

– Que é que você pensa, Pagu, da antropofagia?

– Eu não penso: eu gosto.

– Tem algum livro a publicar?

– Tenho, a não publicar: Os 60 Poemas Censurados, que eu dediquei ao doutor Fenolino Amado, diretor da censura cinematográfica. E o Álbum de Pagu – Vida, Paixão e Morte, em mãos de Tarsila, que é quem toma conta dele. As ilustrações dos poemas são também feitas por mim.

– Quais são suas admirações?

– Tarsila, Padre Cícero, Lampião e Oswald. Com Tarsila fico romântica. Dou por ela a última gota do meu sangue. Como artista só admiro a superioridade dela.

(Informações: Pagu é a criatura mais bonita do mundo – "depois de Tarsila", diz ela. Olhos verdes. Cabelos castanhos. 18 anos. E uma voz que só mesmo a gente ouvindo.)


A matéria era ilustrada por um retrato de Tarsila feito por Pagu.

De 24 de maio de 1929 a 2 de junho de 1931, Oswald de Andrade manteve com Pagu um diário a quatro mãos que intitulou de O romance da epoca anarchista ou Livro das horas de Pagu que são minhas. Lembra, de certa forma, O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo, diário coletivo escrito pelos freqüentadores da garçonnière mantida por ele entre 1918 e 1919. Chama atenção a disparidade entre as entradas feitas por Oswald e por Pagu nesse diário. Lendo-as, não há como não acreditar no que ela escreveu para Geraldo Ferraz: “eu não amava Oswald”. Numa página, ela escreve: “um pouco mais de tédio”; noutra, “acabou-se o entusiasmo” e numa terceira “V. não pode comigo, vou arranjar outro”. Embaixo, Oswald respondeu: “Eu mesmo arranjo”. No dia 30 de janeiro de 1930, Oswald escreve: “Nesta data contrataram casamento a jovem amorosa Patricia Galvão e o crápula forte Oswald de Andrade. Foi deante do tumulo do cemitério da Consolação... etc ”. Ao longo de cinco páginas ele declara seu amor: “Se Pagu soubesse o que tem sido a minha vida desde maio! Só tel-a, só merecel-a, só alcançal-a. [...] Quantas noites passei pensando nella! Quantas manhãs acordei os olhos nella”. Quando Pagu deixa a família, por exigência do PCB, Oswald escreve: “Bebê – Separado, serei teu melhor marido. A casa de Rudá é a tua casa”. E assina: “Seu Andrade”. Pagu, por sua vez, responde noutra página: “Guarde o Rudá pra mim. Guarde você pro Rudá. Guardemo-nos para a Revolução”.

O nome de Rudá é um mistério que esperei ver esclarecido nas memórias de Pagu. Mas ela não toca no assunto da escolha do nome do primogênito. O que diz a lenda é que ele foi batizado como Lança Perfume Rodo Metallico de Andrade, e Rudá é um apelido baseado na marca Rhodia, fabricante do lança-perfume. Isso me foi confirmado tanto por escritores que hoje têm entre 80 e 90 anos, contemporâneos de Pagu, como por uma prima dela, da mesma idade. No entanto, o nome que aparece em todas as fontes impressas consultadas é Rudá Poronominare Galvão de Andrade.

Outras informações para as quais não encontrei comprovação: inúmeras fontes afirmam que Pagu entrevistou Freud, em alto-mar, durante sua viagem para o Japão, e também Pu-Yi, o último imperador chinês. Mas nenhuma dessas fontes vai além da pura e simples afirmação. Não dizem onde as entrevistas foram publicadas, nem citam frase nenhuma que tenha sido dita por um dos dois ilustres personagens a Pagu. Como ela escreveu muito sobre essa viagem a Geraldo Ferraz, fica a impressão de que essas entrevistas não ocorreram. Afinal, ela menciona na carta ter conhecido, noutra viagem, o poeta uruguaio Zorilla de San Martín.

A última lenda sobre Pagu diz respeito... à soja! Inúmeros sites atribuem a ela o mérito de ter trazido ao Brasil as primeiras sementes de soja. A revista Bonifácio, uma publicação do Instituto José Bonifácio, ligado ao PCdoB, garante, no seu número 5, que “Coube a Patrícia Galvão, a Pagu, poetisa e romancista, e a Raul Bopp, diplomata e autor do esplêndido poema Cobra Norato, a proeza de transplantar do Oriente para os trópicos esta leguminosa que hoje gera o principal produto de exportação do País”.

De fato, Bopp contou, em Bopp passado-a-limpo por ele mesmo, de 1972, que “Pagu fez relações de amizade com Mme. Takahashi, de nacionalidade francesa, casada com o Diretor da South Manchurian Railway (verdadeira potência dentro do novo Império manchu, criado sob a égide do Japão). Com a influência de sua amiga, Pagu tinha fácil acesso ao Palácio de Hsingking. Conversava informalmente com o jovem imperador Puhy. Ambos pedalavam as bicicletas, dentro do parque amuralhado da residência Imperial. Quando, numa das suas viagens a Cobe, Pagu me narrou o ambiente de familiaridade que existia em Hsingking, pedi que ela procurasse arranjar com Puhy algumas sementes selecionadas de feijão-soja. Depois de algumas semanas, foram entregues no Consulado, procedentes da Manchúria, 19 saquinhos de sementes dessa leguminosa, que foram enviadas ao Embaixador Alencastro Guimarães, oficial do gabinete do Ministro das Relações Exteriores, Dr.Afrânio de Mello Franco. Esse diplomata, sem perda de tempo, enviou-as ao Ministro da Agricultura de aclimatação, em São Paulo”.

O site da EMBRAPA, no entanto, diz que "a soja chegou ao Brasil via Estados Unidos, em 1882. [..] Em 1891, testes de adaptação [...] foram realizados no Instituto Agronômico de Campinas, Estado de São Paulo (SP). [...] Em 1900 e 1901, o Instituto Agronômico de Campinas, SP, promoveu a primeira distribuição de sementes de soja para produtores paulistas e, nessa mesma data, tem-se registro do primeiro cultivo de soja no Rio Grande do Sul (RS), onde a cultura encontrou efetivas condições para se desenvolver e expandir, dadas as semelhanças climáticas do ecossistema de origem (sul dos EUA) dos materiais genéticos existentes no País, com as condições climáticas predominantes no extremo sul do Brasil."

Como Pagu nasceu em 1910, conclui-se que o cultivo da soja já estava bem avançado quando chegaram as sementes que entregou a Raul Bopp. De qualquer forma, a Embrapa nem sequer menciona os nomes dos dois escritores.

Estas páginas dedicaram-se a Pagu. A jornalista Patrícia Galvão, companheira de Geraldo Ferraz, que brilha no jornalismo cultural a partir de 1940, que se candidata pelo Partido Socialista Brasileiro a uma vaga na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e se dedica ao teatro, sob a orientação de Alfredo Mesquita, não teve espaço neste dossiê.

B.V.

Dossiê Pagu - I

Pagu por Patrícia Galvão
Memórias de uma jovem revolucionária

(este artigo foi publicado na revista O Escritor, número 119)

Há uma Pagu cravada no imaginário dos brasileiros, montada com informações salpicadas por diversos meios desses que, todos juntos, formam aquilo a que se deu o nome de ‘a mídia’. A Pagu que está nas canções, nas minisséries, nos filmes. Por sedutora que pareça, é diferente da que surge nas memórias que seus filhos, Geraldo e Rudá, decidiram trazer à luz, já neste século.

Foram publicadas pela Agir sob o título Paixão Pagu – a autobiografia precoce de Patrícia Galvão. A impressão transmitida é enganosa: tende-se a pensar que ela, pretensiosamente, possa ter escrito essas memórias com a intenção de publicá-las. Não. Trata-se de uma longa carta escrita a Geraldo Ferraz, com quem se casou ao sair da prisão em 1940 e que foi seu companheiro até o fim, em 1962.

O filhos deles, o jornalista Geraldo Galvão Ferraz, recebeu-a do pai na década de 1970 em uma pasta com “fotografias, envelopes, documentos”. Não a leu logo. No prefácio ao livro, diz: “ao longo de décadas, bem que tentei. Mas nunca fui além de umas poucas laudas, brecado pela emoção”. Quando por fim terminou a leitura, concluiu que “o texto era tão revelador, tão intenso, que tinha de ser repartido com o máximo de pessoas possível”. Consultou Rudá, que concordou com a publicação.

O cineasta Rudá de Andrade, filho de Patrícia Galvão e de Oswald de Andrade, é provavelmente o personagem mais importante nessas memórias. Pagu fala nele com amor infinito, mesmo quando lembra os períodos em que esteve afastada do filho, por exigências do Partido Comunista do Brasil (PCB), ao qual se filiara. A ausência de Rudá – “meu Rudázinho”, como ela diz – povoa o livro. Essa ausência é um personagem, também.

Ao destinatário da carta ela se dirige como “meu Geraldo”. “É incrível, meu Geraldo, mas quando resolvi lhe contar a história da minha vida, pensei numa narrativa trágica. Hoje parece apenas que lhe conto que fui à quitanda comprar laranjas” (p. 54).

O envolvimento com Oswald de Andrade, neste relato, não se reveste da aura de romance que usualmente lhe dão. É difícil para o leitor enxergar em Oswald, a partir do olhar de Pagu, o transgressor que a mídia consagrou: “Oswald não era pior do que os outros. Não era sequer vaidoso. E se sempre apareceu como tal, nada mais era do que defesa de sua personalidade, torturada por uma série de complexos de inferioridade. [...] A impotência, ou pelo menos a inferioridade física, era seu maior flagelo, e sua maior alegria era poder arrebatar Nonê com suas conquistas”. (p. 113)

Tarsila do Amaral é mencionada apenas no contexto do casamento de Pagu com o pintor Waldemar Belizário, que morava nos fundos da casa de Oswald e Tarsila: “O meu casamento com Waldemar foi a forma planejada para que eu, de menor idade, pudesse sair de casa sem complicações. Conversando um dia com Oswald e Tarsila, falei-lhes sobre essa necessidade e eles prometeram auxiliar-me” (p. 60). Waldemar aceitaria participar da farsa em troca de uma viagem de estudos à França. Júlio Prestes, então presidente da província de São Paulo, aceitou dar-lhe a viagem como ‘prêmio’, para ajudar Pagu. O casamento foi marcado para dali a um mês.

Todas as referências sobre a união de Pagu e Oswald de Andrade nos dizem que ambos fugiram para Santos enquanto Waldemar partia para a Europa . O que ela conta é diferente. Após o casamento, foi para a Bahia, pensando em viver lá, depois de dar início aos procedimentos para a anulação do casamento. Um telegrama de Oswald pede-lhe que volte, alegando problemas na sentença de anulação. Era um “pretexto”: “havia deixado Tarsila”, conta Pagu. E enfatiza: “Eu não amava Oswald” (p. 60). O que os unia, diz, eram “afinidades destrutivas” e “preconceitos opostos aos estabelecidos” (p. 61).

É no relato da militância política, em conseqüência da qual foi presa 23 vezes, durante a ditadura de Getúlio Vargas, que Pagu se concentra. Não fala das prisões – fala da luta. “Não vou relatar os sofrimentos por que se passa numa prisão de mulheres. [...] A prisão não tinha importância para mim, a não ser no que se referia à paralisação do trabalho começado” (pp. 90-91).

Quanto ao início de sua ligação com o PCB, mais uma vez a lenda diverge da autobiografia. São inúmeras as referências que atribuem ao “próprio Luís Carlos Prestes”, com quem Pagu se teria encontrado na Argentina, a responsabilidade pela sua entrada no partido. Ela, no entanto, diz que lá encontrou apenas as irmãs de Prestes e seu amigo Silo Meirelles, que lhe entregou diversas publicações marxistas. Naquele momento, Prestes já havia declarado seu apoio ao Partido Comunista, do qual, no entanto, recebia ataques que “aceitava estoicamente” (p. 71).

O olhar crítico de Pagu disseca vaidades que não permite nem a si mesma. Dos intelectuais argentinos, diz: “Aquelas assembléias literárias, como eram enfadonhas. O ambiente idêntico ao que eu conhecia cercando os intelectuais modernistas no Brasil. As mesmas polemicazinhas chochas, o mesmo exibicionismo. Eu os freqüentava sem entusiasmo. Bastaria fugir dali para livrar-me deles. Mas eu ficava” (p.72-73).

Poucos personagens aparecem com dignidade nessas memórias. Entre os intelectuais, Raul Bopp, Guilherme de Almeida, Raquel de Queiroz, Murilo Mendes. Dos revolucionários, Herculano de Souza, Luís Carlos Prestes, Eneida e seu companheiro Villar (cujo primeiro nome não é mencionado). Como a carta se destina unicamente a Geraldo, Pagu usa apenas os nomes pelo qual eles chamavam as pessoas a quem se refere. Em alguns casos, podemos inferir ou tentar adivinhar quem são. É o caso de um Borges, por exemplo, de quem diz, sem acrescentar prenomes: “Borges quis se despir no meu quarto cinco minutos depois de me conhecer. Fazer lutinha comigo” (p. 72). Como ela está em Buenos Aires, inserida em rodas de escritores (pelos quais não demonstra admiração ou entusiasmo), fica pouca dúvida quanto à identidade do personagem. Mas temos de lembrar que nesse momento o grande Borges tinha pouco mais de 30 anos – não era o escritor idoso, cego, que ficou na nossa memória e cuja imagem suscita respeito e admiração.

É em Montevidéu que Pagu e Oswald por fim encontram “um homenzinho de aparência medíocre. Eu estava só e quase despedi o nosso visitante, que era Luís Carlos Prestes. Conversamos por três dias e três noites. Como tinham vida aqueles olhos que pareciam enormes. [...] As maiores tolices que eu dissesse seriam ouvidas com paciência e contestadas com minúcia, como se eu fosse a única pessoa no mundo que necessitasse ser recrutada” (p.75). Mas ela conta que “os dias com Prestes não foram suficientes para determinar uma nova orientação”. Isso viria depois, em Santos, por obra de Herculano de Souza, o estivador a quem ela se refere como “o preto Herculano” e de quem diz: “As respostas surgiam todas na pregação do enorme trabalhador negro. Que diferença da explicação intelectual de Prestes, que me exaltara sem convencer” (pp. 80-81).

Encarregada de organizar o Socorro Vermelho em Santos, Pagu conta que conseguiu muito mais adesões do que pedia a meta fixada pelo partido. Escreve: “Minha atividade mostrou rendimento e o partido determinou que eu deixasse todas as obrigações particulares para me dedicar exclusivamente ao trabalho da organização (p. 87).

Herculano viria a ser assassinado pela polícia durante um comício em homenagem a Sacco e Vanzetti, depois do qual Pagu seria presa pela primeira vez, como “agitadora”. Nas memórias, ela declara que o discurso heróico atribuído a ela foi feito na verdade por Maria, uma cozinheira, grande oradora. Mas Pagu, primeira mulher a ser presa no Brasil por razões políticas, tem seu nome cercado de mitos enquanto está na prisão, o que foi “considerado pernicioso pelo Partido por se tratar de uma militante de origem pequeno-burguesa. Sugeriu-se um manifesto e uma declaração minha”. Foi então obrigada a declarar que provocara “a desordem” no comício, falando “sem conhecimento”, sem “autorização da organização, com intento provocador, etc. A humilhação foi dura. Mas achei justa a determinação, disposta a todas as declarações que exigisse de mim o meu Partido” (p. 91).

Que pede ainda mais: “Exigiam minha separação definitiva de Oswald. Não discuti. A atitude de Oswald foi simpática. Disse apenas que eu teria sempre um lugar junto dele. Sofri horrivelmente deixando Rudá, mas não houve de minha parte a menor hesitação” (p. 95). Ela consegue emprego na Agência Brasileira e no Diário da Noite, mas o partido veta: “Nada de trabalho intelectual”. (p. 96)

Trabalha como empregada doméstica, como lanterninha num cinema e como metalúrgica, sempre tentando conseguir adesões para o partido e para os sindicatos. “Com as mãos feridas, o rosto negro de pó, fui considerada comunista sincera. Da noite para o dia, entregaram-me tarefas de maior responsabilidade”. Foi designada como sentinela da Conferência que reuniria “os chefes supremos do Partido Comunista Brasileiro e os representantes da Internacional no Brasil” (p. 99), ao fim da qual, “vendo as figuras [...] dos companheiros que se despediam como irmãos, sentia um bem-estar envolvente. O proletariado brasileiro guiado por uma vanguarda daquela têmpera seria vitorioso dentro de pouco tempo” (p. 102), ela tinha certeza.

Esse entusiasmo não era correspondido por todos os participantes. É sobre sua presença nessa Conferência que Leôncio Basbaum escreveu em Uma Vida em Seis Tempos que “um desses elementos, podemos dizer perniciosos, era uma moça (poetisa) chamada Pagú, que vivia, às vezes, com Oswald de Andrade. Ambos haviam ingressado no Partido, mas para eles, principalmente para Oswald, tudo aquilo lhes parecia muito divertido. Ser membro do PC, militar ao lado dos operários ‘autênticos’, tramar a derrubada da burguesia e a instauração de uma ‘ditadura do proletariado’ era sumamente divertido e emocionante. Nessa Conferência Regional do Rio, um dos membros do grupo de autodefesa, armado de revólveres, era Pagú... Mas havia outros intelectuais, estes um pouco mais sérios, como Eneida.” (apud Augusto de Campos, em Pagu, Vida-Obra, p. 325).

Algum tempo depois da Conferência, Eneida e seu companheiro, o operário Villar, foram expulsos do partido. Pagu, membro do Comitê Fantasma, é obrigada trair o casal, roubando da casa deles a carta que pretendiam enviar à Internacional Comunista pedindo sua reintegração. “Como me sentia ridícula no meu papel de Mata-Hari provinciana. Saí como um trapo dali”, ela diz (p. 118).

As missões que recebe parecem-lhe cada vez mais repugnantes, envolvendo seduzir sexualmente políticos de quem deveria obter informações. Argumenta que a outras militantes não se pede isso – e nem que abandonem seus filhos –, mas respondem-lhe que ela é mais que mera militante, é “uma mulher excepcional” (p. 126). “Pouco a pouco fui percebendo o verdadeiro caráter do Comitê Fantasma”, ela diz. “Os malandros do mangue não percebiam que ao seu lado, participando de suas roubalheiras, estava um membro do P.C.B. Nem a prostituta que apanhava sabia que estava pagando a viagem de um dirigente que precisava, a bem da ilegalidade, embarcar em primeira classe”.

Quando fica seriamente doente e precisa de uma cirurgia, o partido a manda de volta para Oswald. Pagu não aceita voltar. Nonê a visita no quarto que dividia com uma mendiga e de onde Oswald a resgata, dias depois, para levá-la para casa. “Oswald foi de uma delicadeza e uma discrição absolutas”, diz Pagu. “Recebeu-me como se eu o tivesse deixado meia hora antes. Não me fez uma pergunta. Falou ao filhinho que eu afagava: ‘Mamãe chegou’. E deixou-me só, sabendo que eu sofria com sua presença” (pp. 108-109).

Seguem-se fugas sucessivas, com Pagu e Oswald mudando de endereço com freqüência, perseguidos pela polícia. Às vezes levavam Rudá consigo, às vezes deixavam-no com governantas. A irmã caçula de Pagu, Sydéria, chegou a ser presa por engano.

Em uma campanha de depuração do partido, “dois ou três intelectuais da direção” procuraram expulsar da organização “todos os elementos que não tinham origem proletária [...] excetuando-se a si mesmos [...], é claro”. Pagu é afastada por período indeterminado. O companheiro que leva a ordem de afastamento acena com uma esperança: “a organização consente que você faça qualquer coisa para provar sua sinceridade. Trabalhe à margem, intelectualmente.”

Nasce assim a idéia de escrever a novela Parque Industrial, o primeiro livro de Patrícia Galvão, publicado sob o pseudônimo de Mara Lobo. “Se não fosse por insistência de Oswald, não a teria feito”, ela diz. “Não tinha nenhuma confiança” em seus dotes literários (p. 112). Geraldo Ferraz foi quem publicou a primeira crítica ao livro.

O partido sugere, nesse período de afastamento, que Pagu viaje para a Rússia – com seus próprios recursos. Se “embarcasse o mais depressa possível”, receberia credenciais. Mas para obtê-las foi preciso assinar, pela segunda vez em sua história de militância, um documento que não foi autorizada a ler. “Eu o fiz sem hesitar” (p. 136). Esses dois documentos assinados por Pagu devem andar por aí, em algum arquivo secreto...

Durante a viagem, vê tudo com um “adormecimento de sensações”, em que os outros viajantes formavam “um bloco maçante. Eu, que sempre sonhara com longas viagens, não sentia nenhum entusiasmo. Separava-me mais uma vez de meu filho. Ele sofria muito com isso” (p. 137).

Passa um mês nos Estados Unidos. “Era como se já conhecesse tudo. Maior ou menor centro, a mesma humanidade. Ainda perseguições sexuais. Mas todo o meu ser desprezava qualquer insinuação. Como dão importância em toda parte à vida sexual. Parece que há no mundo mais sexo do que homens. Tanta puerilidade, tanta mediocridade” (p. 139).

Antes, passara pelo Pará, onde recebeu “uma recepção inesperada” que, sempre crítica, descreve: “A eterna história dos intelectuais modernos, que se acham na obrigação de fazer circulozinhos em torno de qualquer nome que a imprensa publica duas vezes na crônica escandalosa. O meu nome chegara até o Pará e tive que agüentar as boas vindas do mundo literário chefiado por Abguar. Passeios pela cidade, conversinhas de café, etc. Acabaram me deixando nas mãos de um padre, que me levou ao cinema de onde tive que sair às pressas para não me afogar na batina” (p.138). “A viagem parecia interminável. Da América para o Japão, um bando de turistas irrespiráveis. Desci do navio como quem desce do bonde. Bopp foi o primeiro sorriso simpático que encontrei, depois de muito tempo. [...] Você, Geraldo, é a única pessoa que sabe que [Bopp] foi muito e apenas meu amigo” (p. 140).

Descreve Tóquio como “uma grande cidade, nada mais. Por que chamam de exótico ao Japão? Procurei os intelectuais revolucionários. Fracasso. Procurei o proletariado japonês. A vanguarda, a mesma de sempre. Não suportava mais o Japão. Bopp ajudou-me a ir a Xangai. Vi a fome em Xangai. Desejei um milagre para salvar sozinha a vida da China” (p. 142). Em Pequim ela se surpreende “chorando depois de tanto tempo, desconfiando de minhas lágrimas, que bem podiam ser atitude composta. [... ] Tinha medo do teatro em que podia me fazer personagem” (p.143). “As crianças e os ratos. Os chicotes matando, as torturas públicas. Vi dezenas de mulheres morrendo. Como riam, as mulheres mortas. Não falarei da China. Não me pergunte nunca o que vi e o que senti ali, porque só direi que vi o lodo dourado do Yang-Tsé. Quando saí de Pequim, a morte vinha me acompanhando” (p. 144).

Na Sibéria, maravilha-se: “estava obscena de felicidade. Êxtase absoluto diante da juventude. [...] Eram as mesmas caras dos cartazes de propaganda. [...] Na rua, tive noção do meu fanatismo. Mas gozei-o delirantemente” (pp. 148).

A primeira decepção surge em Moscou, quando entrega uma carta de recomendação a Boris, oficial do Exército Vermelho, que a convida para jantar no Metropol, o hotel onde vive. Pagu surpreende-se com “o preparo luxuosíssimo da refeição. Depois o conhaque no salão de baile. A impressão era exatamente a de estar num suntuoso palácio capitalista. Boris não me explicou porque residia lá, dizendo apenas ser necessário. Houve a tentativa de beijo, como em todos os países” (p. 148). E vem a desilusão final, na praça Vermelha do Kremlin, quando Boris se afasta para comprar chocolates que Pagu queria levar para Rudá. Ela sente que alguém lhe puxa o casaco. Era uma garotinha pedindo esmola: “os pés descalços pareciam mergulhar em qualquer coisa inexistente, porque lhe faltavam os dedos dos pés. Todas as conquistas da revolução pararam naquela mãozinha trêmula estendida para mim. E eu comprava bombons. Então a revolução se fez para isso? Fiz o que pude para acreditar nas justificativas que Boris me apresentou. ‘São vagabundos que não querem trabalhar e sabotam o socialismo.’ Mas como? Crianças vagabundas?!” (pp. 149-150). Ela deixa Moscou no meio do desfile esportivo, enquanto Stalin, “o nosso chefe”, estava na tribuna.

Aqui terminam as memórias de Pagu – que assinava Pagú – escritas em 1940. A partir daí, ela deixará de usar esse apelido. Seguirá para a França, onde ainda militará, sob o codinome de Léonnie, mas isto já não está nas memórias.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

"Por conta" NÃO significa "por causa"

Minha maior fonte de stress gramatical (sim; sofro disso....) hoje em dia é o famigerado “por conta de” usado no sentido de “por causa de”. Houve um tempo em que só caipiras do interior de São Paulo e de Minas usavam essa expressão. Agora virou ‘coisa de eruditos’! Há quem diga que nesses rincões fala-se um português mais puro. Tá!... Então por que esses admiradores das formas castiças não dizem “pra mó de”, de uma vez? Se é pra falar em caipirês...

“Por conta de” NÃO significa “por causa de”! Significa “sob a responsabilidade de”. Ex.: “A bebida fica por conta de vocês”. Verifiquem. Consultem o Houaiss – ou qualquer outro bom dicionário.

O pior é que tem gente que jura que o Houaiss avaliza esse uso...! Por isso eu disse: “consultem o Houaiss” (e não sites que afirmam que “segundo o Houaiss” esse uso é correto).

Há, por exemplo, a carta de uma professora aposentada de Presidente Prudente que diz que fica, como eu, “muito irritada” com esse uso. Pois imaginem que... um certo Carlos Marinheiro (que se apresenta na net como autoridade em gramática) diz a ela que “Não vejo qualquer razão para ficar irritada com a expressão”. Em seguida, ele lista diversos usos corretos de “por conta”. MAS termina dizendo que “no Houaiss a expressão «por conta de» é sinónima de «por causa de», a exemplo de «p[or] conta da nova lei, os impostos serão aumentados».”

Em que Houaiss, hein? Tenho aqui três deles e nenhum contém essa barbaridade. Pelo contrário. Na edição mais recente, de junho de 2009, há 15 sentidos possíveis para a palavra “conta”. A única que inclui um “por” antes de conta é esta:

10. Derivação: sentido figurado.
encargo, responsabilidade
Ex.: deixou o serviço por c. dela

Caramba! Se ela ficava, como fico, “irritada” com o mau uso da expressão, imagino como terá reagido a essa resposta que cita uma referência inexistente!

Eu, pelo menos, fiquei "por conta"!

("por conta" – expressão que se usa no nordeste para indicar indignação)

"Realocação terá efeito de colesterol ruim"

O título na pg. 14 do Estadão de hoje, sobre a readmissão dos ‘servidores públicos’ demitidos pelo Collor há mais de 15 anos, é ótimo. Comunica perfeitamente a idéia central dos breves seis parágrafos.

A primeira frase, no entanto, faz com que sujeito e verbo se choquem numa umbigada:

"A massa de ex-servidores que o Congresso quer realojar na administração pública terão o efeito de uma injeção de colesterol ruim."

Putz! Será que isso foi fruto dessas reedições que a gente fica fazendo nas frases, puxa daqui, rerredige ali e no fim libera o texto sem perceber que criou um monstro?

DISCUTINDO A REDAÇÃO:
No entanto... segundo Maria Tereza Piacentini (http://www.kplus.com.br/materia.asp?co=86&rv=Gramatica), embora a Concordância Gramatical peça o verbo no singular, nesse tipo de situação, admite-se também uma "concordância ideológica" em que "o verbo vai para o plural em razão da idéia de pluralidade que a expressão toda transmite".