segunda-feira, 24 de maio de 2010

Artigo Traduzido (Estadão de hoje)

Tive pena do profissional que recebeu a incumbência de traduzir o artigo do New York Times (seção Visão Global, no Estadão de hoje. pg. A12). Não há como dizer aquilo em portugês. Percebe-se que as palavras no original eram “single” e “unmarried”. Não li o original, mas tá na cara que era isso (lerei, ok?).

O artigo, assinado por Maureen Dowd, é um protesto sobre a forma como aquela juíza indicada para a Suprema Corte dos Estados Unidos, Elena Kagan, vem sendo apresentada: “an unmarried woman”, em semi-oposição a “a single woman”.

O jeito mais próximo de se dizer isso, em Português, seria “solteira” e “solteirona”. O tradutor optou por “solteira” e “uma mulher que não se casou” – ou seja: traduziu ao pé da letra. E não tem como dizer “unmarried” com menos de quatro palavras, em brasileiro! Claro, existe “descasada” – mas isso é outra coisa (o que, aliás, dificulta a tradução de muitas piadas em inglês).

Como no Brasil ninguém usa quatro palavras para dizer "solteirona", fica meio difícil para o leitor entender qual é, afinal, a crítica que está sendo feita pela colunista do NY Times. Explico: o protesto dela é sobre o fato de que, lá, ninguém se referiria a um homem na mesma situação como “an unmarried man”. O cara pode estar velho, pode nunca se ter casado, mas continua sendo, simplesmente, “single”. Solteiro.

Diz a jornalista norte-americana que “single” envolve uma conotação de “eligible”, ou seja, "escolhível", desejável: uma pessoa que ainda está no mercado de parceiros do sexo oposto.

Acontece que, pensando bem, se o tradutor optasse por solteirona em semi-oposição a solteira, a reclamação não colaria. Porque, afinal, no Brasil nós usamos essa palavra também no masculino: o cara é "solteiro” enquanto é jovem e depois vira “solteirão”.

Putz, é mesmo: em que ponto um solteiro passar a ser “solteirão”? Quando eu era criança, havia muitos “solteirões”. Alguns moravam com outro solteirão. A imagem que se tinha era a de bons amigos mulherengos – discretamente mulherengos, pois nunca eram vistos acompanhados de mulher nenhuma – que simplesmente jamais tinham encontrado sua ‘alma gêmea’. Como éramos inocentes, naquele tempo! Ou discretos.

Enfim: a jornalista está reclamando do machismo embutido na opção por “unmarried” em vez de “single”, quando apresentam a biografia da juíza. E como o tradutor poderia passar o significado desse esperneio ao leitor brasileiro que, por contigências do destino, não entenda inglês? (Uma raridade, concordo. Mas existe. Até mesmo entre os leitores do Estadão.)

O tradutor fez alguma excelentes opções. “Tia Perpétua”, por exemplo. Como será que estava, no original? Aunt Jemima? Verificarei. (Naturalmente, ele não conseguiu escapar da armadilha do infinitivo-flexionado-ou-não, que pega todos os escritores, hoje: “com frequência elas deixam de ser solteiras depois de chegar aos 40 ou 50 anos, ou após simplesmente ultrapassarem a idade de ter filhos”... Se ele soube tão bem usar o infinitivo não-flexionado em “chegar”, por que não repetiu a façanha no “ultrapassar”? Haverá quem diga que assim está certo. Mas não está. Equipe do Estadão, consultai vossos Manuais! Deixai que o espírito de Eduardo Martins vele sobre vossos sonhos!).

Voltando ao assunto: se eu recebesse esse texto para traduzir, como teria lidado com as palavras “single” e “unmarried”? Não sei. Acho que recusaria o trabalho. Minha solidariedade ao tradutor!